FRANCISCO PUGLIESE, arqueólogo do Departamento de Antropologia da UnB
A arqueologia brasileira perdeu uma de suas figuras mais emblemáticas na madrugada de 4 de junho de 2025. Aos 92 anos, Niède Guidon partiu deixando um legado tão monumental quanto as pinturas rupestres que ajudou a preservar. Nascida em 1933 em Jaú, interior paulista, Guidon construiu uma trajetória que revolucionou a arqueologia nacional. Formada em história pela USP em 1959, o destino a uniu à Serra da Capivara ainda em 1963, quando, trabalhando no Museu Paulista, deparou-se com fotografias de pinturas rupestres da região.
Após o exílio na França durante a ditadura militar, retornou ao Brasil liderando a Missão Arqueológica sa no Piauí e, em 1973, uma breve expedição àqueles lugares transformou-se em uma missão de vida. As descobertas no sítio Boqueirão da Pedra Furada desafiaram o consenso científico que apontava que os primeiros humanos chegaram às Américas há cerca de 13 mil anos pelo Estreito de Bering, uma vez que lá foram encontrados vestígios que sugeriam uma presença humana muito mais antiga — datações que apontavam para 32 mil anos, ou até mesmo 100 mil anos, segundo suas interpretações mais ousadas. Essas afirmações, embora ainda controversas, abriram novas perspectivas sobre o povoamento do continente americano.
Mais do que uma cientista, Guidon foi uma visionária e uma força da natureza quando o assunto era preservação. Em 1979, conseguiu a criação do Parque Nacional Serra da Capivara, reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1991 e fundou, ainda em 1986, a Fundação Museu do Homem Americano. Sob sua batuta, surgiram dois importantes museus: o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza. O primeiro, em São Raimundo Nonato, abriga um acervo impressionante de artefatos arqueológicos que contam a história da ocupação humana na região. O segundo, mais recente, foca na evolução geológica e biológica da Serra da Capivara, revelando como aquela paisagem sertaneja foi moldada ao longo de milhões de anos.
Guidon entendia o patrimônio cultural como motor de transformação social. Essa preocupação com o desenvolvimento regional também se manifestou na criação do curso de arqueologia e preservação patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), estabelecido em 2004 no campus Serra da Capivara. Foi o primeiro curso de graduação em arqueologia em uma instituição pública de ensino, representando um esforço inédito para levar educação superior ao interior do Nordeste brasileiro. Assim, moradores locais foram capacitados como guias e "guardiões", criando um vínculo entre a comunidade e seu patrimônio ancestral.
No entanto, nem tudo são flores no legado de Guidon. A criação do Parque Nacional Serra da Capivara gerou conflitos com as comunidades tradicionais que habitavam a área. O caso mais emblemático é o da comunidade Zabelê, que foi desapropriada e forçada a deixar suas terras para a implementação do parque. Com outras comunidades menores, Zabelê foi considerada incompatível com a preservação daquela unidade de conservação de proteção integral.
Essa desapropriação forçada revela uma contradição fundamental na abordagem de preservação patrimonial: enquanto se buscava preservar vestígios de ocupações humanas antigas, negava-se o direito de permanência às populações contemporâneas que fazem parte da história e da cultura local. Para muitos moradores, o parque e as pesquisas arqueológicas aram a ser vistos com desconfiança e ressentimento, em vez de serem reconhecidos como parte de sua identidade cultural.
O caso da Serra da Capivara nos convida a refletir sobre os modelos de conservação que adotamos. A arqueologia contemporânea tem buscado incorporar perspectivas mais colaborativas e inclusivas, reconhecendo as comunidades locais não apenas como beneficiárias ivas ou mão de obra, mas como parte ativa na produção de conhecimento e na gestão do patrimônio cultural.
Talvez, o verdadeiro legado de Niède Guidon não esteja apenas em suas descobertas sobre a antiguidade do homem nas Américas, mas no estímulo à reflexão crítica sobre as práticas e responsabilidades na gestão do patrimônio cultural. Seu trabalho nos desafia a buscar caminhos mais inclusivos, éticos e socialmente responsáveis.
Ao olharmos para a trajetória de Guidon, vemos uma mulher que desafiou convenções em um campo dominado por homens, que enfrentou o ceticismo da comunidade científica internacional, que lutou contra a burocracia e o descaso governamental para preservar um tesouro arqueológico inestimável. Mas também vemos alguém cujas decisões impactaram profundamente a vida de comunidades tradicionais, gerando conflitos que persistem até hoje.
É nessa complexidade que reside a grandeza de seu legado. Mais do que respostas definitivas sobre nosso ado mais remoto, Niède Guidon nos deixa perguntas fundamentais sobre como queremos construir o futuro da arqueologia brasileira. Um futuro que honre tanto os vestígios materiais de nossos anteados quanto as comunidades vivas que são herdeiras e guardiãs desse patrimônio.