
DANDARA TONANTZIN, deputada federal (PT-MG), coordenadora do Grupo em Defesa do Cerrado da Frente Parlamentar Ambientalista
Desde as primeiras luzes do dia até o cair da noite, o Cerrado pulsa vida: é o segundo maior bioma da América do Sul, ocupa 22% do território brasileiro e abriga quase 30% das águas superficiais do país, alimentando dezenas de bacias que banham outros biomas. No entanto, vive sob a chancela de leis flexíveis que permitem uma exploração sem freios e do racismo ambiental que impõe desafios para as populações que ali habitam.
A reserva legal no Cerrado corresponde a apenas 20% da propriedade, contra 80% exigidos na Amazônia, por exemplo. A lógica é nítida: tratar o Cerrado como zona de sacrifício. É o que também se vê nos dados do Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, da rede MapBiomas, divulgados em maio de 2025, que apontam que o Cerrado foi o ecossistema brasileiro mais devastado em 2024: 652.197 hectares.
O relatório aponta uma redução de 32,4% no desmatamento, considerados todos os biomas brasileiros — destaque para a região amazônica, que registrou uma queda de 54% entre 2022 e 2024. Mas no Cerrado a situação se inverte: especialmente no Matopiba, região do nordeste do país que registrou 75% do desmatamento do Cerrado e 42% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil.
O principal vetor desse desmatamento é a expansão agropecuária. Fazendas se estendem, máquinas ceifam palmas e raízes, e o solo degradado deixa de cumprir seu papel de esponja natural. Consequência direta: as nascentes secam, o ciclo hidrológico se rompe e outras regiões sofrem no rastro da devastação. O Rio São Francisco, que mata a sede de 15 milhões de brasileiros, já sente a pressão; a bacia do Tocantins perde volume em áreas cruciais para a irrigação; e o Pantanal, um dos maiores pantanais do mundo, arrefece sua exuberância.
Mas o impacto vai muito além dos mapas e gráficos. No Cerrado, age também o racismo ambiental, um arbusto espinhoso que mata lentamente comunidades vulneráveis: povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e populações tradicionais. A perda de terra e recursos naturais torna-se sinônimo de exílio forçado; a contaminação de água e solo, de doenças respiratórias e problemas de saúde crônicos; e a erosão cultural, de um empobrecimento irreversível de saberem ancestrais. Tudo isso embalado por uma sinfonia de violações de direitos humanos.
O desastre da barragem de Fundão, em Mariana, é um exemplo emblemático de racismo ambiental no Brasil. Estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora mostrou que as comunidades mais atingidas eram majoritariamente negras. Isso revela como a localização e a vulnerabilidade das populações negras estão diretamente relacionadas à exposição a desastres socioambientais. A omissão histórica do Estado e das empresas no cuidado com essas comunidades aprofunda as desigualdades.
Mas, ainda podemos escolher outro caminho. Primeiro, reconhecendo oficialmente os direitos territoriais — demarcações imediatas e seguras para povos indígenas e quilombolas. Precisamos assegurar a implementação de políticas públicas inclusivas, que integrem a participação das comunidades tradicionais na gestão dos recursos naturais. É urgente também investir em educação ambiental, desde as escolas até programas de extensão rural, para mostrar que conservar o Cerrado é garantir água, clima estável e alimentos saudáveis. A justiça ambiental precisa avançar com vigor. Precisamos assumir o compromisso do desenvolvimento sustentável que harmonize a produção agropecuária com floresta em pé — modelos de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) já demonstram resultados positivos em solo Cerrado.
Neste momento, o Cerrado espera mais do que menções protocolares: busca compromissos sólidos, metas ambiciosas e financiamento real para sua conservação. À frente da coordenação do Grupo em Defesa do Cerrado da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara dos Deputados, estamos, inclusive, realizando importantes articulações para pensar políticas públicas que visem barrar retrocessos na agenda ambiental em escala global e em especial no nosso continente das Américas.
Afinal, se ignorarmos esse gigante de biodiversidade e fonte de água, condenaremos não só a nós mesmos, mas as futuras gerações a um cenário de escassez, conflitos e crises socioambientais. A hora de agir é agora — cada árvore preservada, cada riacho que ainda corre, cada comunidade que resiste é um grito de vida que ecoa para além do Cerrado.